segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Epistemologia do jornalismo no Brasil




Epistemologia do jornalismo

Certa vez, discutindo com um sobrinho jornalista sobre uma notícia tendenciosa em uma rede de TV, ele procurou justificar a atitude de sua colega com a desculpa de que seria apenas um pequeno erro. Minha resposta define o que acho seja o maior problema do jornalismo nacional: “A questão não é de erro ou acerto, a questão é de posicionamento. A questão é epistemológica. A questão é política”.

Passo a explicar.

Em minha graduação em Física, houve uma disciplina que até hoje influencia minha visão de mundo: A Epistemologia de Gaston Bachelard, na Fafich-UFMG, com o prof. Ricardo Fenati. Bachelard, em seu livro Novo Espírito Científico nos ensina que a velha disputa entre o Idealismo e o Empirismo Positivista não dão conta das transformações da Física Moderna. O positivismo ensinando que toda a fundamentação do conhecimento científico está na experiência, no fato científico. O idealismo dizendo que a estrutura conceitual é que possui realidade. Ao contrapor ambas as correntes epistemológicas, Bachelard relembra que “atrás de cada Teoria há um experimento, mas atrás de cada experimento há uma teoria”. Na busca do conhecimento científico, só experimentamos aquilo para o qual temos um arcabouço conceitual que dê significado ao expeimento.

Pois bem, se a Física, uma das coroas da visão positivista da ciências naturais do século XIX, admite hoje que há uma relatividade no conhecimento, pois ao aproximar do fato científico, não o fazemos nús, mas vestimos os óculos de um posicionamento teórico prévio, o que podemos dizer da pretensa defesa do jornalismo que se julga capaz de separar o seu posicionamento ideológico do fato jornalístico que pretende descrever?

Para mim a resposta é muito simples: “É impossível! O jornalista sempre há de ler o fato jornalístico a partir de seus pré-conceitos”. Assim, se os óculos são azuis, tudo parecerá azul, mas se os óculos forem cinzas, não haverá cor que ilumine o seu texto dito jornalístico.

Para efeito didático, deixe-me exemplificar com um inocente texto da jornalista Lydia Medeiros, do Poder em Jogo – Jornal O Globo, publicado ontem, dia 9 de setembro de 2017.

Socorro Federal para universidades e institutos

O Ministério da Educação liberou esta semana R$ 1 bilhão para universidades e institutos federais. Desde o início do ano foram repassados para as instituições federais de ensino R$ 5,27 bilhões. Dá um fôlego aos reitores dessas universidades que, no entanto, ainda não aderiram à lei de transparência sobre o dinheiro público. A legislação já tem 15 anos em vigor.” Lydia Medeiros, Poder em Jogo, 9/9/2017.


O que há de errado neste curto comentário? Tudo! A começar pelo título...

Ao utilizar a expressão “Socorro Federal” a jornalista induz o leitor a uma interpretação inteiramente equivocada dos fatos. Socorro, como o socorro ao Estado do Rio, induz a interpretação de má gestão das instituições federais de ensino e esconde o fato de que o governo Temer impôs um corte brutal no orçamento das Universidades1 e Institutos. As verbas de custeio estão sendo liberadas em parcelas de um dezoito avos. Como, pelo que me consta, o ano tem apenas doze meses, isto equivale a um corte linear de 33% do orçamento. As verbas de investimento estão sendo liberadas em um setenta e dois avos, como se o ano se estendesse por 6 longos anos... Portanto, não se trata de socorro para cobrir a má administração, mas de corrigir um erro grosseiro da administração federal e evitar o total colapso que a medida draconiana de corte linear está causando.

O mais espantoso é o desprezo pela realidade que a jornalista quer veicular.
O que significa o corte no investimento? Ora, as Universidades são instituições quadricentenárias que possuem processos de decisão em colegiado que extrapolam as decisões de efeito imediato. A criação de um curso de Medicina, por exemplo, envolve gastos de investimento por um período mínimo de dez anos, pois envolvem a implantação desde laboratórios de anatomia para os anos iniciais até clínicas especializadas e hospital escola para os anos finais e residência médica. Diversas cursos de Medicina foram criados nos últimos anos para evitar o colapso do atendimento médico da população. O corte linear não inviabiliza apenas o início de novos projetos, compromete o atendimento aos projetos em andamento. Portanto é uma decisão burra que desorganiza as Instituições de Ensino.

Quanto desta realidade é evocada no texto da jornalista? Nada! Ela prefere veicular a observação maliciosa, inverídica e completamente desconectada do texto, de que as Universidades Federais “ainda não aderiram à lei de transparência”. O mais grave nesta declaração, é que ela é falsa e tem como única finalidade denegrir a imagem das instituições públicas de forma gratuita. A lei de transparência de 2000, atualizada pela Lei Complementar 131/2009 não menciona a Universidade, cujo orçamento está englobado no orçamento da União. Todos os processos e gastos das Instituições Federais estão há anos no portal transparência. E mais importante do que a Lei de Transparência, é a Lei de Acesso à Informação, Lei no. 12.527/2011. Nos sites das Universidades, por padrão, você tem acesso ao serviço de Informação ao Cidadão e à Ouvidoria. Os salários dos servidores estão disponíveis no site de transparência do Executivo. Todas as compras e contratações são realizadas em acordo com a Lei 8.666/93 e podem ser consultadas diretamente nos sites das Universidades. Muito antes ao contrário do que afirma a jornalista, atualmente, em desrespeito à autonomia universitária estabelecida no Art. 204 da Constituição, a Procuradoria Federal está dentro das Universidades Federais, sem subordinação ao Reitor, como uma intervenção permanente. Como Chefe do Departamento de Ciências Exatas da Universidade Federal de Lavras e membro do Conselho Universitário, posso garantir que a Universidade possui formas de controle interno, sendo que as atas das reuniões dos conselhos superiores, bem como as portarias e despachos da administração  executiva da Universidade são públicos e podem ser encontrados nos sites da Instituição.

O caso mais complexo é aquele em que eventualmente a direção executiva da Universidade está em conluio com a Procuradoria Federal na instituição. Como o caso Miller na PGR está demonstrando, nesta situação cabe aos orgãos de controle da Procuradoria Federal identificar e investigar eventuais irregularidades, já que a denúncia de qualquer servidor da Universidade pode dar origem a retaliações em que o servidor é um elo desprotegido.

Note que todas as iniciativas são resultado de processos iniciados no Governo FHC, que foram aprofundadas nos governos Lula. Acima dos confrontos partidários, são conquistas da Sociedade Brasileira. Portanto, a colunista do Jornal O Globo está fazendo uso do que passou a ser considerado o Jornalismo Declarativo, que não checa as suas informações e veicula informações falsas. Ou seja, a jornalista fala a partir de seus próprios pré-conceitos, de forma desconectada com a verdade. Não há fundamentação epistemológica para este tipo de jornalismo. E, diga-se de passagem, nada pior para sociedade do que um jornalismo desconectado da verdade.

Mas este não é um caso isolado. A forma obscurantista com que a linha editorial do Jornal O Globo trata a Universidade Pública é, no mínimo, irresponsável. A Universidade Pública é um bem da Sociedade Brasileira. Como professores e pesquisadores, os docentes têm imenso receio em afirmar posições infundadas. Esta é a visão acadêmica. Mas, aparentemente, o jornalismo no Brasil há muito perdeu o receio de realizar declarações inverídicas.

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