quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

A credibilidade do jornalismo em xeque



O escândalo é desconcertante!
Durante anos, mais de 60 reportagens, um premiado jornalista da mais importante revista semanal da Alemanha inventava ou falsificava reportagens.

Claas Relotiu, um jovem jornalista com quatro importantes prêmios de jornalismo, aparentemente, de forma sistemática, inventou histórias e entrevistas. O caso foi desvendado por um colega, Juan Moreno, freelancer, encarregado de um trabalho conjunto sobre os problemas da fronteira USA - México. A proposta da reportagem, no estilo jornalismo investigativo, era de que Juan Moreno, filho de emigrantes espanhóis na Alemanha, se infiltrasse num grupo de emigrantes através do México. Claas se infiltraria, do outro lado da fronteira, entre milicianos civis que atacam os emigrantes mexicanos. O espanhol constata certas inconsistências na narrativa da estrela do jornalismo alemão, denuncia, sofre com a desconfiança da revista, mas por fim consegue provar que Claas inventava partes da história, inseria diálogos inverídicos e não entrevistou quem disse que tinha entrevistado. Confrontado com os fatos, Claas admite que adulterava reportagens, é despedido e devolve os 4 prêmios de jornalismo que recebeu em sua curta e brilhante carreira. Inicialmente, a Der Spiegel consegue identificar sete casos comprovados de adulteração. 

As palavras de Claas sobre os seus motivos são arrazadoras:
"Es ging nicht um das nächste große Ding. Es war die Angst vor dem Scheitern...  mein Druck, nicht scheitern zu dürfen, wurde immer größer, je erfolgreicher ich wurde".  Traduzindo: "Não se trata da (busca) pela próxima grande tacada. Foi o medo de falhar... a pressão de não poder falhar se tornou cada vez maior, quanto mais sucesso eu alcançava" 

O escândalo abriu um debate enorme na Alemanha. Em comentário, Thomas Tuma do Handelsblätter identifica que o escândalo atinge o jornalismo como um todo. Em uma era em que as fakenews influenciam eleições, a constatação de que o jornalismo profissional está sujeito a distorções é preocupante. Nesta semana ocorreu um grande debate sobre os desdobramentos e as consequências do escândalo entre especialistas da área durante o "Mediensalon", em Berlim. As reações são diversas. O redator-chefe do Frankfurter Rundschau declarou-se decepcionado:  "Era só o que nos faltava..."
Mas é preciso analisar as diferentes realidades.

A realidade do jornalismo no Brasil é muito diferente do que acontece na Alemanha. O tipo de reportagem que Claas Relotius fazia eram reportagens investigativas no exterior. Assim, as personagens criadas, os diálogos falseados eram tipicamente de desconhecidos anônimos que nunca leriam suas palavras distorcidas no relato. Especialistas destacam que o caso Claas Relotius foi fomentado pelo fato de que a premiação de reportagens na Alemanha promoveu a necessidade de as reportagens serem cada vez mais sensacionais. Reportagens sensacionalistas sobre o exterior são raras no Brasil e não se consubstancializam no debate interno sobre o papel da imprensa, por exemplo, na destruição da figura de Lula, um tema de foro interno em que é muito mais difícil criar diálogos que não existiram.

No Brasil, o debate é centrado sobre o papel amplo da imprensa na formação de opiniões. Neste ponto, a imprensa tem sistematicamente feito ouvidos moucos às denúncias da academia. O debate sobre a imprensa na sociedade é realizado nos centros de pesquisa do ponto de vista do conceito de ideologia de classes, com viés marxista, mas tem se desenvolvido também em áreas tão distantes quanto  na linguística, na Análise do Discurso, na Epistemologia, a parte da filosofia que debate a construção do conhecimento e sua veracidade. Em todos os debates, há um consenso de que o jornalista fala a partir de seu ponto de vista ideológico, a partir de suas crenças e intenções, a partir da diferenciação de seu discurso. Assim, a escolha dos fatos que se julgam relevantes, a forma de construção do discurso, o espaço dado a cada participante do relato etc... revelam escolhas que refletem a opinião do jornalista e não, a existência de uma verdade ontológica externa a ele. Já destaquei em outro escrito como que Bachelard enfatiza que, até mesmo nas Ciências ditas Exatas, a Teoria constrói conceitos que determinam e restringem a "verdade" a ser revelada pelos "fatos" experimentais. Imaginem quão mais fluidas são as verdades sociais a serem comprovadas em um trabalho jornalístico...

O que é necessário então?
Primeiramente, é necessário que o jornalista se conscientize de seu lugar epistemológico, político e social e o explicite. Não é possível que ele ainda se apegue ao discurso de que busca a verdade de forma neutra e impoluta. O jornalista fala de um ponto de vista específico e o faz a partir de uma opção política específica. Certas regras, como o de dar o mesmo tempo a diferentes pontos de vista não são suficientes quando ele utiliza o tempo dado ao "outro", para reforçar ainda mais o seu próprio ponto de vista. Vimos isso nas últimas eleições e estamos presenciando esse mesmo tipo de distorção agora, no debate  sobre a previdência. Isso é inaceitável!  

Segundo, é necessário a criação de mecanismos claros que possibilitem a construção de um debate em que as posições contrárias à linha editorial tenham tratamento igualitário. Por exemplo, no debate sobre a Previdência, não é possível que não se dê voz àqueles que enfatizam a necessidade de um levantamento sério sobre as dívidas bilionárias dos bancos e de grandes corporações com a previdência, que exigem transparência na identificação de quais as classes de trabalhadores têm privilégios e quais exatamente já estão enquadrados desde as reformas de Lula e de Dilma. É preciso que se investiguem as consequências da proposta de reforma, por exemplo, no Chile.

Mas o que vemos neste ponto é um debate monocórdico, em que a grande imprensa, reproduzindo o desejo das grandes corporações financeiras, destaca a necessidade de reforma da previdência, e não dá espaço nem para o levantamento do contraditório, nem para o destaque de alternativas às propostas neoliberais do governo, nem para o mérito das reformas já realizadas pelos governos do PT.

O mais trágico é que nunca, como hoje, a imprensa é tão necessária à consolidação da democracia no País, e é triste ver que ela está parada em falsos paradigmas e incapaz de desempenhar seu papel histórico neste processo.