sábado, 28 de setembro de 2013

Os morangos




Ele sente o cheiro profundo que a mata próxima exala. Cheiro úmido de fumo molhado que sobe do vale. Cheiro de musgo e vida, exalado pelos poros da densa vegetação da mata que rodeia a nascente. Da varanda, ao pôr do sol, seus olhos vagueiam pelo horizonte sem destino. A explosão de vida da primavera o faz lembrar as palavras de Jesus.

“Aprendei, pois, da figueira a sua parábola: Quando já o seu ramo se torna tenro e brotam folhas, sabeis que está próximo o verão.”

Seu olhos encontram ao longe o velho e teimoso Ipê Amarelo, impunemente florido, embelezado, contra toda a probabilidade... Contra a dura terra pedregosa da Serra de Carrancas, maltratado pela seca que já dura seis meses. Sobrevivente das queimadas, desconhecendo a pedra e a dor. Um monumento à resistência e à esperança. Como ele próprio. Aos noventa e oito anos, tem amarguras insolúveis em seu peito, tem dores que nunca o abandonam. Mas tem ainda aquele terno sorriso nos lábios e o brilho intenso nos olhos. O dia vai esvaindo-se aos poucos. Em breve o manto escuro da noite sem lua vai cobrir o vale do Rio Grande. Ele estende a mão, pega da bandeja um morango escarlate. Dá uma vigorosa mordida na carne doce e tenra do morango, que ainda pela manhã recebeu o seu último orvalho. Que bom que o Pernambuco lhe trouxera aqueles morangos, justo hoje quando sua alma se enternecera mais do que de costume. Antigamente, ele mesmo tomaria o tempo para ir encontrar o sô Pernambuco e pegar a sua porção dos saborosos morangos. Mas, com a idade, as pernas cansadas, passou a depender da vinda amorosa do morango até o seu refúgio em Águas Claras.

Que delícia o morango carnudo e fresco! Lembrou da infância distante, quando não existiam morangos, mas a jabuticada negra e doce enchia as tardes de alegria e alvoroço, com a criançada da vila, no imenso pé de jabuticaba no quintal de casa. Que delícia a vida! Noventa e oito anos. Quantas vezes ele viu o sol se pôr? E em todas vezes este mesmo sentimento de mistério que lhe turva os olhos, marejados de ternura e alegria. Ainda hoje, o mesmo sentimento.

Aquele lindo pôr do sol o fez lembrar Antônio Fagundes como Deus, imaginado na genialidade de Cacá Diegues, num velho filme assistiu. A fala do personagem ainda ressoa em seus ouvidos. “Você nem imagina como foi o nascer do sol do primeiro dia no Paraíso. Quando vi aquela belezura, senti um orgulho danado de mim mesmo... Eu quis logo que alguém visse tudo aquilo. Eu estava tão sozinho. E aí... bem, aí eu fiz o homem e começaram os meus problemas.”

Sim, a vida, meu irmão, não é fácil. É o grande perigo!

Sua memória vagueia pelas lembranças. Quantos nascer de sóis, quantos pôr de sóis. Noventa e oito anos. Ultimamente, de vez enquando se pega pensando na morte, na grande despedida. Quantos amigos já se foram? Quantos ainda verei ir? E ele, estupefato. Mas como? Meu Deus, parece que foi ontem que tudo começou. Pega mais um morango. Que delícia é a vida. Nas lembranças, todos os amores, todas as paixões se misturam, como um mel que destila o seu doce prazer. Como pode ser isto, que o corpo se canse da vida, que os olhos se escureçam e os músculos se tornem frágeis, quando, por dentro, o mesmo prazer de criança, a mesma alegria e deslumbramento pela vida. O tempo deixa marcas no corpo, mas deixa intacta a alma. Por dentro, tudo igual. Os mesmos sonhos de menino, a mesma juventude, as mesmas paixões. Todas intensas, todas eternas. Os desejos, idênticos, exatamente iguais. Tudo igual na alegria, nos desejos, no sentimento de desafio da imensa utopia.

Nunca se adaptou à vida. Sempre inconformado com o mundo que recebeu. Inconformado está com o mundo que em breve deixará. Até neste ponto! Volta em círculos o pensamento. Que insanidade, que o corpo aprisiona e mata uma alma imortal? Que mistério, um corpo que fenece e, por dentro, uma alma que nunca envelhece. Que mistério é este, que a alma é eterna e corpo não. Ele pensa que foi disto que falaram todos os filósofos e místicos em todos os livros que leu. É que eles certamente também sentiram que a decrepitude do corpo, deixa intactos os sonhos da alma. Que delícia é a vida! Mas, como é breve. Como o último morango da cesta do Sô Pernambuco!

Nenhum comentário: