Ele sente o cheiro
profundo que a mata próxima exala. Cheiro úmido de fumo molhado que
sobe do vale. Cheiro de musgo e vida, exalado pelos poros da densa vegetação da mata que rodeia a nascente.
Da varanda, ao pôr do sol, seus olhos vagueiam pelo horizonte sem
destino. A explosão de vida da primavera o faz lembrar as palavras
de Jesus.
“Aprendei, pois, da figueira a sua parábola: Quando já o seu ramo
se torna tenro e brotam folhas, sabeis que está próximo o verão.”
Seu olhos encontram ao
longe o velho e teimoso Ipê Amarelo, impunemente florido,
embelezado, contra toda a probabilidade... Contra a dura terra
pedregosa da Serra de Carrancas, maltratado pela seca que já dura
seis meses. Sobrevivente das
queimadas, desconhecendo a pedra e a dor. Um monumento à resistência e à esperança. Como ele
próprio. Aos noventa e oito anos, tem amarguras insolúveis em seu
peito, tem dores que nunca o abandonam. Mas tem ainda aquele terno
sorriso nos lábios e o brilho intenso nos olhos. O dia vai esvaindo-se
aos poucos. Em breve o manto escuro da noite sem lua vai cobrir o
vale do Rio Grande. Ele estende a mão, pega da bandeja um morango
escarlate. Dá uma vigorosa mordida na carne doce e tenra do morango,
que ainda pela manhã recebeu o seu último orvalho. Que bom que o
Pernambuco lhe trouxera aqueles morangos, justo hoje quando
sua alma se enternecera mais do que de costume. Antigamente, ele mesmo
tomaria o tempo para ir encontrar o sô Pernambuco e pegar a sua
porção dos saborosos morangos. Mas, com a idade, as pernas
cansadas, passou a depender da vinda amorosa do morango até o seu
refúgio em Águas Claras.
Que delícia o morango
carnudo e fresco! Lembrou da infância distante, quando não existiam morangos, mas a jabuticada
negra e doce enchia as tardes de alegria e alvoroço, com a criançada
da vila, no imenso pé de jabuticaba no quintal de casa. Que delícia
a vida! Noventa e oito anos. Quantas vezes ele viu o sol se pôr? E
em todas vezes este mesmo sentimento de mistério que lhe turva os
olhos, marejados de ternura e alegria. Ainda hoje, o mesmo sentimento.
Aquele lindo pôr do
sol o fez lembrar Antônio Fagundes como Deus, imaginado na
genialidade de Cacá Diegues, num velho filme assistiu. A fala do
personagem ainda ressoa em seus ouvidos. “Você nem imagina como foi
o nascer do sol do primeiro dia no Paraíso. Quando vi aquela
belezura, senti um orgulho danado de mim mesmo... Eu quis logo que
alguém visse tudo aquilo. Eu estava tão sozinho. E aí... bem, aí
eu fiz o homem e começaram os meus problemas.”
Sim, a vida, meu irmão, não é fácil. É o grande perigo!
Sua memória vagueia
pelas lembranças. Quantos nascer de sóis, quantos pôr de sóis.
Noventa e oito anos. Ultimamente, de vez enquando se pega pensando na morte,
na grande despedida. Quantos amigos já se foram? Quantos ainda verei ir? E
ele, estupefato. Mas como? Meu Deus, parece que foi ontem que tudo
começou. Pega mais um morango. Que delícia é a vida. Nas
lembranças, todos os amores, todas as paixões se misturam, como um
mel que destila o seu doce prazer. Como pode ser isto, que o corpo se
canse da vida, que os olhos se escureçam e os músculos se tornem
frágeis, quando, por dentro, o mesmo prazer de criança, a mesma
alegria e deslumbramento pela vida. O tempo deixa marcas no corpo,
mas deixa intacta a alma. Por dentro, tudo igual. Os mesmos sonhos de
menino, a mesma juventude, as mesmas paixões. Todas intensas, todas
eternas. Os desejos, idênticos, exatamente iguais. Tudo igual na
alegria, nos desejos, no sentimento de desafio da imensa utopia.
Nunca se adaptou à
vida. Sempre inconformado com o mundo que recebeu. Inconformado está com o mundo
que em breve deixará. Até neste ponto! Volta em círculos o pensamento. Que insanidade, que o corpo aprisiona e mata
uma alma imortal? Que mistério, um corpo que fenece e, por dentro,
uma alma que nunca envelhece. Que mistério é este, que a alma é
eterna e corpo não. Ele pensa que foi disto que falaram todos os
filósofos e místicos em todos os livros que leu. É que eles certamente também
sentiram que a decrepitude do corpo, deixa intactos os sonhos da
alma. Que delícia é a vida! Mas, como é breve. Como o último
morango da cesta do Sô Pernambuco!
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